Existe uma frase feita muito popular que defende a tese que “quem tem fome só tem um problema na vida”. E, de facto, não está errada, a pirâmide de Maslow explica.
Os problemas nas nossas vidas começam a multiplicar-se quando as nossas necessidades básicas estão satisfeitas. É aí que se estabelece a linha que separa os seres humanos dos restantes animais.
Este prólogo serve para me referir aos resultados das eleições de 10 de março, que foram, muito consensualmente, avaliados como uma expressão do descontentamento popular, um protesto contra o sistema e uma mobilização sem precedentes (em número absoluto de votos foram as eleições mais participadas da democracia portuguesa) para mostrar que o povo português está a viver mal.
Isto, claro, para justificar os resultados do Chega.
Confesso que tenho muita dificuldade em aderir ao argumento que defende que as pessoas votam no Chega porque vivem mal. Tenho muita dificuldade em crer que, alguém que não tenha casa para viver, esteja preocupado com casas de banho mistas, que quem tem mês a mais para o salário que recebe esteja preocupado com castrações químicas, que quem espera anos por uma cirurgia no SNS esteja preocupado com a “ideologia de género”, que quem quer dar educação aos seus filhos esteja preocupado com a imigração e mesmo as questões da corrupção, evasão fiscal e economia paralela – que são, obviamente, problemas que minam e revoltam uma comunidade – não estarão no topo das prioridades para quem passa dificuldades na vida.
O fenómeno do neopopulismo do século XXI é outra coisa. Não é por acaso que tem a expressão que tem em países como os EUA, Alemanha, França, Itália e Holanda (respetivamente os 1º, 3º, 7º, 10º e 19º países mais ricos do mundo, medido no valor do PIB).
O exemplo brasileiro é, talvez, onde melhor se compreende o que alimenta este fenómeno num país que, apesar de também ser uma potência económica mundial (11º maior PIB), tem graves problemas sociais para resolver, não sendo a imigração responsável por eles. Bolsonaro surge como excrescência do início da resolução de alguns desses problemas, bastante bem ilustrado com a parábola do filho da empregada que foi estudar para a mesma escola do filho da patroa.
Essa é a filosofia que sustenta os projetos de poder de Trump, Le Pen, Salvini, Wilders e Ventura, substituindo na parábola o filho da empregada pelos imigrantes que vêm roubar os nossos trabalhos e destruir a nossa cultura.
São projetos que se alimentam de medos e preconceitos e são tanto mais bem-sucedidos quanto melhor for a capacidade do candidato em promover nas pessoas um permanente estado de alarme e ansiedade que, a qualquer momento, vai acontecer uma catástrofe por não termos sido previdentes a trancar as portas da nossa casa.
A estratégia é a mesma que usam os catastrofistas climáticos que nos querem permanentemente angustiados pelas escolhas individuais que fazemos no dia-a-dia. Abordam um problema que é real e urgente, mas ao invés de contribuir para a solução pela via da racionalidade, optam pelo atalho do medo.
É assim que se explicam os votos no Chega de empresários cuja atividade depende de mão-de-obra imigrante, dos nossos emigrantes que não querem ser confundidos os nossos imigrantes, de pequenos trafulhas que fogem aos impostos com o argumento que “se o estado me anda a roubar a mim, eu também posso roubar ao estado”.
No meio de tudo isto, e dos 1,2 milhões de votos no Chega, há, claro, pessoas que não querem deixar morrer a réstia de esperança que ainda têm neste país. Porque os problemas que elenquei existem e os partidos do arco da governação não têm parecido interessados em resolvê-los.
Mas será que a solução para eles é a construção de uma sociedade de costas voltadas?
Os resultados eleitorais de 10 de março convocam à reflexão todos os partidos, mas também convocam os eleitores: o que o país precisa é de tribos em torno de partidos de culto ou de soluções preconizadas por pessoas verdadeiramente dedicadas à causa pública?
Espero que nesta legislatura se afirmem mais as segundas do que as primeiras.
João Bastos