Todos os adultos felizes recordam com carinho e saudade as brincadeiras inocentes da sua infância. A dinâmica dos ambientes urbanos, os prolongados horários de trabalho dos pais e o isolamento em que vivem as famílias nucleares (que contam cada vez menos com a família alargada) condicionam a organização dos “tempos livres” das crianças, que vivem com horários sobrecarregadíssimos, como se de adultos se tratassem.
Desta forma, as crianças cordiais aceitam manter-se presas às cadeiras dos espaços interiores por tempo muito superior ao que seria desejável, executando excesso de atividades passivas, formatadas e padronizadas. A maioria delas passa menos tempo em espaços exteriores do que aquele que é recomendado para os reclusos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (que é de uma a duas horas por dia).
Para além disso, a maioria das crianças/adolescentes faz menos exercício físico do que aquele que é recomendado pela Organização Mundial da Saúde para idades superiores a um ano (que deveria ser de 3 horas por dia). O sedentarismo, tão prejudicial à saúde, é assim incentivado desde uma fase precoce da vida.
O tempo livre promove o tédio, e o ócio é um estado muito cansativo para o cérebro. Quando a criança “não tem nada para fazer” é impulsionada a procurar atividades que lhe ocupem o tempo e o cérebro.
A curiosidade inata da criança incentiva-a a descobrir o mundo que a rodeia. As disponibilidades culturais que lhe são proporcionadas condicionam as oportunidades de desenvolvimento do seu processo de criatividade. As brincadeiras que ela inventa são fonte de prazer pessoal e, simultaneamente, de aprendizagem, desempenhando um papel crucial na aquisição e desenvolvimento de competências cognitivas, físicas, sociais e emocionais.
Réplicas em miniatura tornam-se pouco aliciantes para as crianças, quando comparadas com o acesso livre e seguro ao mundo dos adultos, confirmando a inutilidade do excesso de brinquedos que muitas delas possuem. A maioria das atividades recreativas digitais são aliciantes, facilmente disponíveis, mas o seu conteúdo é muito pobre e pouco construtivo. Para além disso, o tempo despendido nessas atividades rouba chances preciosas de estimulação, impedindo a criança de se ocupar com outros processos catalisadores do seu desenvolvimento global.
De forma didática, a atividade de brincar pode sistematizar-se em quatro diferentes formas de jogo:
1- O jogo simbólico, que compreende a extensão da imaginação, através da representação de vários papéis de “faz de conta”, entre o real e a fantasia (por exemplo, brincar aos médicos, aos professores, imitando os pais, etc).
2- O jogo social, que se caracteriza pela existência de regras simples ou complexas que permitem a interação social (por exemplo, o jogo da macaca, o jogo “do mata”, o pião, o berlinde, o elástico, etc).
3-O jogo de atividade física envolve o dispêndio de energia através da atividade motora, com a complexidade a aumentar com a idade (por exemplo, gatinhar, correr, agarrar, equilibrar, trepar, jogar à apanhada, etc).
4-O jogo com objetos, que reflete a capacidade de manusear ou manipular objetos (naturais, didáticos, tradicionais, entre outros). É movido pela curiosidade, tem uma variabilidade cultural e geográfica, sendo dependente da “tralha” disponível (brinquedos previamente construídos ou criados pelo sujeito, legos e jogos de construções, assim como pedras, paus, folhas, ramos, areia, etc)
Brincar é uma atividade ancestral, transgeracional e capaz de perpetuar a cultura de um povo. A brincar a criança explora o meio envolvente de forma livre, espontânea e intencional. Ao observá-la a brincar, o adulto também aprende a conhecê-la melhor. É uma atividade circunstancial, praticada de forma transitória no tempo, pelo que as disponibilidades espaciais, culturais e temporais proporcionadas à criança condicionarão as suas oportunidades criativas. Tem algum risco inerente, garantindo o desenvolvimento da capacidade adaptativa face ao inesperado e à própria sobrevivência. A superproteção física aumenta os riscos de acidentes letais. Sabe-se que a probabilidade de sobrevivência numa queda acidental em piscina é maior para uma criança que está habituada a ter os joelhos esfolados do que numa que é superprotegida. A privação de “brincar” poderá vir a limitar a sociabilidade e a adequada tomada de decisões, podendo ainda relacionar-se com alguns comportamentos negativos (agressividade, tristeza, melancolia, indisciplina).
Como enfatiza o Professor Carlos Neto, as crianças brincam porque lhes dá prazer e não para serem mais saudáveis. Se por um lado lhe promove o bem-estar imediato, tem-se vindo a verificar que existe uma relação direta importante entre a oportunidade de brincar na infância e o futuro nível de realização pessoal, empreendedorismo e sucesso na vida adulta.
A inibição dos telemóveis nos recreios das escolas do nosso concelho tem permitido um recrudescimento progressivo das brincadeiras tradicionais. Resta-nos reinventar espaços físicos onde as crianças possam circular e brincar livremente (cidades, parques infantis, ruas e espaços verdes), tal como aconselha o Professor Carlos Neto. Para além disso, é necessário garantir-lhes tempo livre de verdade (sem sobrecarregar os seus horários com atividades padronizadas) e de qualidade, repleto de oportunidades criativas, para que desta geração de crianças brotem adultos muito felizes.
Opinião, por Teresa Gil Martins
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