A Quinta dos Animais

O título não tem a intenção de referir-se diretamente à fábula de George Orwell; contudo, após a divulgação das imagens da agressão a uma criança autista numa escola da Moita, é inevitável reconhecer que a obra, originalmente escrita em 1945, permanece extremamente relevante nos dias de hoje.

A história é uma crítica política e social que usa animais como símbolos de características humanas. Já a cena amplamente compartilhada nas redes sociais pode servir como modelo para retratar aspetos das sociedades atuais.

Não que o bullying e as agressões físicas em ambiente escolar sejam, infelizmente, uma novidade ou um “reflexo dos tempos”, mas o voyeurismo, a indiferença e a pornografia da brutalidade são condimentos que se foram juntando ao longo dos anos e que não tem no advento das redes sociais o seu pecado original. Já lá vou.

Da mesma forma que a alegoria orwelliana partia de um caso de estudo (no caso, uma exploração pecuária) para retratar uma sociedade, naquela cena escolar podemos encontrar o arquétipo de personagens que facilmente identificamos noutros contextos: o agressor, a vítima, os instigadores e os indiferentes, numa sociedade onde é cada vez mais difícil encontrar os justos e os insurgentes. 

Onde a história se baralha é com o facto de naquela cena os protagonistas serem todos crianças, o que obriga a uma revisão das categorias que cada uma assume. Ou melhor, a vítima é sempre vítima. A criança autista foi vítima naquele contexto e, infelizmente, provavelmente noutros. Merece, pois, toda a solidariedade e empatia que recebeu nas redes sociais e, espero e acredito, a que se transferiu para a sua comunidade escolar.

Mas e os outros? Que enquadramento familiar e social terá uma criança que agride outra com tamanha brutalidade e fúria, como se sentisse ali um escape de alma? Merecerá apenas condenação e desprezo face àquela ação, sem dúvida, condenável e desprezível, ou um olhar atento para perceber o que está por detrás de toda aquela violênacia?

E aqueles que, ao assistir àquela agressão, tiveram como primeiro pensamento o alcance das suas redes sociais? O que está na origem de tamanha insensibilidade? Se calhar a educação que está a ser ministrada pela geração que durante dias a fio vibrou com o pontapé que o Marco deu à Sónia (falo com propriedade, é a minha geração) tem tanta ou mais influência do que os vídeos que se encontram na internet onde alguém se gaba por ter atropelado outra pessoa e fugido. Aqueles miúdos que se entretiveram a filmar a agressão são as criaturas, não são os criadores (só de conteúdo…). Esses somos nós que temos a responsabilidade de formar melhores cidadãos e, aparentemente, não estamos a conseguir.

O mesmo se pode aplicar àqueles que viram, ouviram, sentiram, mas puderam ignorar. Foram os menos culpados, mas foram igualmente cúmplices.

As quatro categorias anteriormente descritas são, afinal, apenas uma. Cada um à sua maneira, são vítimas da degenerescência educativa, social e cultural que se tem acentuado na era digital.

O que se passou na escola da Moita não é um assunto só da escola da Moita, é um espelho de um país onde se sente uma crescente indiferença em relação ao outro, que vai do recreio da escola até ao hemiciclo do parlamento, onde se tornou aceitável insultar pessoas com deficiência, e que encontra campo fértil em classes profissionais que deviam ser as primeiras a demonstrarem empatia com os desfavorecidos, como os polícias, os políticos ou os professores.

O rumo civilizacional que vamos assistindo da nossa sociedade é bastante alarmante e parece irreversível. A indecência tornou-se mainstream, incentivada e até elegível. Voltando ao exercício de transpor o livro de George Orwell ao Portugal de 2025, parece cada vez mais adequado adotar o título alternativo: o triunfo dos porcos!

João Bastos