Em abril, o país conheceu mais uma vítima do crescente culto de violência contra mulheres. Só que desta vez a vítima foi um homem, de nome Manuel Gonçalves, “Manu” como era conhecido em Braga, que perdeu a vida aos 19 anos pela simples razão de ser uma pessoa decente.
Ainda em abril, foi também notícia a violação filmada de uma adolescente em Loures por três homens, vista por mais de 32 mil pessoas e sem nenhuma denúncia.
Estes dois crimes tiveram motivações idênticas e, se os crimes de homicídio e violação são abomináveis em si mesmos, a estes dois soma-se outra dimensão de abjeção que é a cumplicidade social, quer dos seguranças da discoteca, quer dos utilizadores do TikTok que transmitem a sensação de que vivemos numa sociedade onde a violência contra as mulheres não só é perdoada, como é incentivada.
São tempos estranhos que vivemos, quando há quem seja retribuído milionariamente por produzir conteúdos digitais onde elabora sobre o “comportamento adequado” das mulheres e o “comportamento adequado” dos homens dirigido às mulheres. É a conversa de balneário elevada a teoria sociológica, desenvolvida por gurus que são uma espécie de Paulas Bobones das inseguranças.
Tudo aqui está errado. O que começou por ser um sistema bondoso (não necessariamente justo) de retribuição aos artistas pela transmissão de videoclipes em plataformas como o YouTube, evoluiu para um modelo que já levantava algumas questões éticas e deontológicas de substituição de anunciantes por influencers e acabou por redundar neste bar aberto completamente subversivo em que quanto mais hedionda for a opinião do interlocutor, maior é o alcance do algoritmo e, consequentemente, maior a remuneração.
Não se pode considerar razoável alguém receber milhares de euros por fazer um vídeo no TikTok a afirmar que “mulher que namora não sai à noite”. Mais do que isso, aos partidários da tese que defende que a educação se dá em casa ou que pedem para “deixar as crianças em paz” quando o assunto é vacinas ou programas escolares, não se sentem desconfortáveis por estar um sujeito destes a querer meter-se no papel de educador dos vossos filhos?
E depois, a ajudar a cozinhar todo este caldo cultural, temos os abutres do costume que não perderam tempo a vir saciar-se do caso de Braga para o tentar transformar numa questão racial. É curioso que sobre o caso de Loures muitos destes abutres consideraram que a vítima se pôs a jeito. Os ângulos de abordagem mudam consoante a nacionalidade dos agressores.
Manuel Gonçalves não merecia este aproveitamento. Foi alguém que tentou lutar contra um sistema cada vez mais enraizado. Que se atravessou pelas mulheres – sem lhes perguntar a nacionalidade – e que pagou com a vida essa “ousadia”. Ele tentou fazer sozinho o que nenhuma das 32 mil alminhas foi capaz de fazer. Ele foi a exceção quando devia ser a regra.
Esta cultura de misantropia feminina entranha-se de tal forma que até quem a tenta contrariar se vê, involuntariamente, a contribuir para ela. Repare-se que quando a vítima é homem tem sempre nome, seja Manu ou Odair, já quando é mulher é referida como “uma jovem de Loures” (bem me esforcei para encontrar o nome para escrever este artigo) ou um número nas estatísticas da violência doméstica. Quando as vítimas são abstratas dificilmente as causas se tornam concretas. Quando as vítimas não têm nome dificilmente se tornam símbolos de uma revolução. Por mais infeliz que tenha sido a vida de Giséle Pelicot, ainda foi uma sorte não ter nascido em Portugal.
É alarmante a velocidade a que a degradação moral está a alastrar nas sociedades ocidentais. Há mais de 100 anos, as sufragistas lutavam por direitos civis, hoje as mulheres lutam por direitos humanos tão básicos como não serem drogadas, nem violadas. E é por isso que esta tem de ser uma luta de todos. É por isso que o que faz falta neste país é um Manu em cada esquina!
João Bastos