De acordo com a citação da Direção Geral de Saúde (DGS), o conceito de maus-tratos “inclui qualquer ação ou omissão não acidental, perpetrada pelos pais, cuidadores ou outrem, que ameace a segurança, dignidade e desenvolvimento biopsicossocial e afetivo de qualquer criança ou adolescente”. Existem vários tipos de maus-tratos: negligência, maus-tratos físicos e psicológicos/emocionais, abuso sexual e Síndroma de Munchausen por Procuração.
Tal como o nome indica, a negligência inclui os comportamentos passivos ou ativos que revelem a incapacidade de os cuidadores satisfazerem as necessidades básicas da criança/adolescente, incluindo a sua alimentação, o sono, o vestuário apropriado à época do ano, o controlo da segurança ou o cumprimento da prescrição e dos cuidados médicos indicados. Sem autonomia, a criança depende exclusivamente do adulto que dela cuida para sobreviver.
Os maus-tratos físicos resultam de ações não acidentais isoladas ou repetidas infligidas pelos seus cuidadores. As marcas podem ser visíveis na pele, de uma forma mais ou menos perpetuada. As crianças vítimas de violência física podem apresentar-se com hematomas cutâneos (“nódoas negras”) em vários estádios de evolução (com cores diferentes: negras, azuis e amarelas) e com diferentes localizações em simultâneo (tórax, costas e cabeça). Podem ainda ocorrer marcas de queimadura de cigarro em diferentes localizações da pele, escoriações diversas mais ou menos generalizadas (por exemplo provocadas por esfregões da loiça). Mas as marcas nem sempre são visíveis. Uma criança abanada com violência sofre hemorragias internas graves. Quando é transportada inconsciente para a urgência devido a hemorragias intracranianas graves, o diagnóstico de “criança chocalhada” não costuma ser fácil.
Mas logo que tal suspeita se levanta, o recurso a radiografias do corpo da criança costuma confirmar sinais de maus-tratos prévios, tais como, consolidações de fraturas antigas não tratadas e com localizações altamente improváveis para quedas acidentais (costelas, ossos longos). A administração intencional de medicamentos para sedar a criança constitui outra forma de agressão. Quando a suspeita recai sobre a sua família, o afastamento e a vigilância fora do domicílio constituem a única forma de garantir a proteção da criança, o que pode prolongar o seu tempo de internamento.
Os maus-tratos psicológicos/emocionais variam desde a negligencia até à completa rejeição afetiva. Todas as crianças dependem de um vínculo afetivo com um adulto para serem emocionalmente estáveis, mesmo quando se encontram institucionalizadas. Ele vai muito além da mera presença física. Se o vínculo está ausente, se é precário ou negativo, sequelas emocionais e psicológicos tornam-se inevitáveis e facilmente se convertem em patologia do foro psiquiátrico.
O abuso sexual compreende diferentes níveis, que vão desde o assédio (por exemplo obrigar a criança a observar imagens pornográficas na presença do adulto, conversas, manipulação, entre outros) até à efetivação do coito. O abusador é, normalmente, um familiar ou alguém muito próximo à família. Ele exerce um grande poder sobre a vítima, mantendo-a sob ameaça, o que lhe permite manter-se insuspeito por períodos prolongados. Perante qualquer suspeita de violação, a criança/adolescente deve ser observada no próprio dia. Isso permite a confirmação laboratorial da situação, bem como procedimentos destinados à prevenção e pesquisa de eventual doença sexualmente transmissível. Simultaneamente, a queixa deve ser formalizada junto das entidades policiais locais.
A Síndroma de Munchausen por Procuração constitui uma forma muito particular, mas não rara de maus-tratos. Os cuidadores fingem e queixam-se aos profissionais de saúde de sintomas que a criança efetivamente não tem. Para isso referem queixas difíceis de confirmar, simulam cirurgias prévias ou doenças que nunca existiram, bem como outros cenários bizarros. Para que a história se torne mais verosímil, os cuidadores podem induzir alguns sintomas através da administração camuflada de drogas/medicamentos à criança. Para além do risco de vida, elas são submetidas a internamentos prolongados e inúmeros exames médicos desnecessários (mais ou menos invasivos). As dificuldades e contradições encontradas na pesquisa do verdadeiro diagnóstico durante as longas estadias no hospital começam a levantar suspeitas que, normalmente, encetam outro tipo de investigações, vigilâncias e atitudes de proteção da criança.
Infelizmente, na minha longa prática clínica tive oportunidade de constatar que todas estas situações existem, confirmando que não se resumem a meras explanações teóricas. Jamais esquecerei alguns dos casos que observei. Alguns deles sobreviveram com sequelas graves para o resto da vida. Recentemente a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) divulgou um aumento do número de vítimas entre crianças e adolescentes. Inacreditavelmente, na maioria das situações o agressor faz parte da própria família.
O mês de abril foi dedicado à sensibilização da comunidade para os maus-tratos em crianças e adolescentes. Trata-se de um problema de saúde pública muito grave e delicado, que se encontra longe de ser erradicado. Todos os tipos de maus-tratos têm repercussões graves na saúde global, na segurança e no desenvolvimento da criança ou do jovem. Embora de forma não exclusiva, eles afetam particularmente os grupos populacionais mais vulneráveis.
A campanha de sensibilização faz-se acompanhar pela icónica imagem do laço azul. Na sua origem encontra-se uma avó (Bonnie W. Finney) do estado da Virgínia (EUA), que viu sucumbir um neto e decidiu sensibilizar a sociedade para os maus-tratos a que a sua outra neta também era submetida. Decidiu circular com um laço azul atado na antena do seu carro, cuja cor simbolizava as “nódoas negras” de ambos os netos. Despertando a curiosidade da sua comunidade, sensibilizou-a para o problema. O impacto da estratégia inicial motivou a generalização do símbolo para as campanhas subsequentes.
O melhor ambiente para o crescimento de uma criança é, indubitavelmente, no seio da sua família. Cuidar de uma criança implica paciência, dedicação e muita responsabilidade, mas é, simultaneamente, muito gratificante. Por motivos de trabalho, a criança geralmente também precisa de cuidados complementares da família alargada/instituições. Pela sua vulnerabilidade e incapacidade de comunicar, a criança pequena torna-se um alvo fácil e difícil de identificar. Manifestações sistemáticas de medo relacionadas com a aproximação de um mesmo indivíduo do círculo próximo da criança podem tornar-se suspeitas e constituir um sinal de alerta.
Embora não caiba a nenhum cidadão a capacidade de julgar, constitui um dever de cidadania a notificação de qualquer caso suspeito. Esta deve ser feita junto das entidades policiais ou na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Risco. O sigilo e a investigação espoletada pelas entidades judiciais serão indispensáveis para salvar e preservar vidas inocentes. Atitudes destinadas a proteger a segurança da criança, bem como o respetivo julgamento são da exclusiva responsabilidade das entidades idóneas designadas para essas funções.
Opinião, por Teresa Gil Martins
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