Álvaro Joaquim Raposo Ribeiro nasceu a 20 de outubro de 1946. Com 23 anos de idade partiu para o Ultramar onde esteve 25 meses e sete dias. A 7 de dezembro de 2019, assinalando 48 anos da chegada a Lisboa, apresentou o livro “O Tempo de Todas as Incertezas”.
Como surgiu a ideia de escrever o livro?
Há uns anos atrás, um grupo de jovens almeirinenses, alguns deles estudantes universitários, numa conversa à mesa do café do Grupo 4 em Almeirim, punham em causa a existência da Guerra Colonial tal como ela aconteceu.
Eu, que me encontrava numa mesa ao lado, fiquei estupefacto pelo que tinha acabado de ouvir, e logo ali, decidi que um dia, escreveria a minha vivência nessa mesma guerra. Naquele momento, o que mais me surpreendeu, foi o facto de aqueles jovens que já tinham passado pelas várias fases de ensino, com alguns deles, já no ensino universitário, terem
uma total ignorância sobre um assunto, que poucos anos antes, tinha afectado praticamente todas as famílias portuguesas, que pela obrigatoriedade do serviço militar obrigatório, viram partir para as três frentes de combate em África, os seus entes queridos.
Porque decidiu dar o nome de “O Tempo de Todas as Incertezas”?
Pela simples razão de que naquele tempo, tudo era incerto, a começar pela
incerteza de não sabermos se o nosso regresso seria pelos próprios pés, ou,
como infelizmente aconteceu a milhares de combatentes, que fizeram o seu
regresso sim, mas dentro de urnas de chumbo, dissimuladas em caixotes de
madeira, transportados no fundo dos porões dos navios transformados em
transporte de tropas. Naquele tempo, apenas havia uma certeza, a incerteza
de um futuro próximo. Por tudo isto, achei o nome adequado para o livro em causa.
Quando começou a escrever?
Iniciei esta aventura no ano de 2011, depois de ter consultado o Arquivo Geral do Exército, onde obtive a relação dos nomes que, em Junho do ano de 1966, realizaram a inspecção militar no concelho de Almeirim.
Foi escrevendo em papéis soltos ou logo no computador?
Posso dizer que foi logo em computador, já que se não fosse assim, seria impossível fazê-lo. Este testemunho passado em forma de livro, foi escrito andando para trás e para frente, consoante ia pesquisando, escrevendo pelo meio os textos referentes às minhas memórias, muitas delas, auxiliadas pelas muitas fotografias e slides que fui tirando ao longo da comissão.
Sempre quis passar esses textos e fotos para livro?
Dizer que sempre quis passar as memórias e as fotografias para livro, faltaria à verdade se dissesse sim. No entanto havia em mim, a convicção de que um dia faria a catalogação de todas as fotografias e slides. Isso aconteceu, muito antes de começar a escrever o livro. Tenho ao todo, cerca de novecentos registos fotográficos, alguns deles de uma importância
histórica, já que foram obtidos em pleno teatro de operações.
Durante muitos anos, após a minha chegada de África, que aconteceu a 7 de Dezembro de 1971, as memórias de uma guerra para a qual nada contribuí, a não ser com suor, dor, lágrimas e muito sangue, foram colocadas de parte, já que havia toda uma vida pela frente, onde havia lugar para uma carreira profissional e a formação de uma família com esposa e filhos.
Por isso, dentro de uma gaveta, foram guardados todos os pertences que
comigo viajaram de Moçambique, como recordação de um passado recente, tendo em atenção que um dia, poderiam ser devolvidos à luz do dia. Felizmente, isso aconteceu ao fim de muitos anos, dando origem a um testemunho que, passado em forma de livro, servirá provavelmente
daqui a muitos anos, para consulta dos futuros estudiosos da Guerra Colonial. Veladamente era falado dentro de casa, algumas das peripécias passadas durante a comissão, sem no entanto, nunca se aprofundar os assuntos.
É bom lembrar que vivíamos, na altura, numa ditadura que, por todos os meios, impedia entre outras, as manifestações vividas em África. Com o passar do tempo, e após o 25 de Abril, onde passou a ser possível a realização dos almoços de confraternização dos Batalhões e Companhias que combateram em África, começou a germinar em todos nós, a ideia
de trazer ao conhecimento da população em geral, os momentos vividos durante a comissão.
Que memórias tem do Ultramar?
As memórias que tenho do Ultramar são um misto de boas e más.
Más, porque tive de enfrentar uma guerra para a qual não estava preparado, onde em alguns momentos, vi muito sofrimento e muita raiva. Boas, porque apesar de tudo, tive o privilégio de voltar são e salvo, e ter visto coisas que não passavam na altura, no meu imaginário. Paisagens
que só a África nos oferece. Nascer e pôr-do-sol, simplesmente deslumbrantes, ainda mais quando visto em plena savana africana. O cheiro de África, é qualquer coisa de deslumbrante. Estas lembranças, criam em mim uma saudade imensa desses tempos, apesar da guerra que enfrentei.
Moçambique continua a ser no meu imaginário, um local que me fascinou para o resto da vida. Sempre tive um desejo secreto de lá voltar e visitar os locais por onde andei. Esse desejo não se concretizou e, o mais provável, é não se concretizar, mas será uma mágoa que levarei comigo para a
eternidade.
Quanto tempo esteve em teatro de guerra?
Toda a minha comissão foi passada em zona operacional, onde se sentia os efeitos da guerrilha, através de emboscadas e da colocação de minas anticarro nas picadas. A minha comissão, que teve a duração de 25 meses acrescidos de mais uns dias, foi cumprida nos distritos de Tete e do Niassa, sempre em permanente actividade operacional.
O que mais o marcou negativamente nesse período?
A chegada ao aquartelamento para o qual fomos destinados, quando saímos
de Lisboa. O quartel do Tembué era um local isolado do resto do Mundo, circundado por arame farpado, onde havia um conjunto de barracas de zinco e várias construções em cana e capim. Junto do aquartelamento, havia um aldeamento onde haviam crianças sub-nutridas com barrigas enormes. Nenhum de nós, enquanto nos preparávamos para embarcar para Moçambique, sonhava que as condições que iriamos encontrar seriam assim. No entanto, durante a minha comissão, encontrei instalações muito piores, nomeadamente no Lunho e Nova Coimbra, aquartelamento próximos do lago Niassa.
A outra situação que me marcou bastante negativamente foram as primeiras baixas que o Batalhão sofreu, após uma emboscada da Frelimo que causou três mortos e 4 feridos graves, no dia 22 de Março de 1970. Dois meses depois, a minha Companhia sofreu duas baixas, uma através de uma emboscada e, outro, através do accionamento de uma mina anticarro.
Para terminar, a caminho do navio Niassa atracado em Nacala, os batalhões que tinham partido em Vila Cabral e Nova Freixo num comboio especial
transformada em transporte de tropas, no dia 11 de novembro de 1971, os militares que seguiam nesse comboio tiveram dois acidentes que se transformaram em tragédia.
O primeiro, à saída de Nampula onde o comboio fez uma paragem breve, houve um descarrilamento provocado com as carruagens a ficaram destruídas, mas apenas com feridos ligeiros. O segundo, apenas a 20 kms Nacala, a automotora onde seguíamos sofreu um embate
frontal sofreu com um vagão carregado de toros de madeira que provocou vários e feridos graves que ficaram entalados numa amálgama de ferros. Estes mortos e feridos graves pertenciam ao B. Artª 2898 que connosco fazia a viagem de regresso a Lisboa.
Há memórias boas dessa fase?
As memórias boas são as amizades que se criaram para o resto das nossas vidas. Esta amizade é diferente de todas as outras, porque nasceu no meio de um ambiente, onde durante dois anos o problema de um, era um problema de todos.
Este é um tipo de amizade, que apenas é compreendido por quem passou pela Guerra Colonial. A esta amizade, acrescento os momentos de franco convívio entre camaradas em momentos de grande significado na vida dos portugueses. O Natal era um deles, onde cada um de nós, extravasava sentimentos de solidariedade, amizade, conforto e esperança de dias melhores.
Perdeu muitos amigos lá?
Perdemos ao todo 11 camaradas, que viajaram desde Lisboa, integrados no
Batalhão de Artilharia 2897 onde estava integrada a Companhia de Artilharia 2627 a que pertenci. Em relação à C.Artª2627, perdemos em combate, dois camaradas metropolitanos e um do contingente local. Na Companhia de Caçadores 2623, para onde mais tarde fui transferido, por razões que explico no livro, não registámos baixas.
A esta distância, fez-lhe sentido Portugal ter tido esta posição?
Não. Hoje percebo perfeitamente que a Guerra Colonial apenas existiu por capricho de um senhor chamado Oliveira Salazar, que sendo inteligente como se dizia, não quis ver o que se passava por todo o Mundo, onde as potências colonizadoras nomeadamente a França, Inglaterra e Bélgica, tinham negociado a independência das suas colónias, dando origem a novos Países.
Salazar e Marcelo Caetano, antes e durante os anos da guerra, nunca tiveram uma estratégia para resolver politicamente o problema
ultramarino, já que era sabido que ele apenas podia ser resolvido através dessa via. Portugal, durante 14 anos, enfrentou uma guerra de guerrilha, desencadeada pelos Movimentos de Libertação de cada uma das três frentes de combate, Angola, Guiné e Moçambique, sem nunca ter o apoio internacional, onde até os seus aliados o abandonaram. Nas Nações Unidas estava completamente isolado.
A concepcção deste livro teve também muito de pesquisa?
Este livro tem realmente muito de pesquisa, mas tem também, muitos textos que foram escritos, através de recordações de momentos que nunca esqueci e que dificilmente esquecerei, tal a carga emocional que eles tiveram em mim.
Quais foram as fontes de informação?
As fontes de informação foram várias, passando pelos antigos quarteis do Regimento de Infantaria nº 5 nas Caldas da Rainha, onde frequentei a Recruta, da Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas, onde frequentei o Curso de Sargentos Milicianos, da Escola Prática de Engenharia em Tancos, onde tirei o Curso de Minas e Armadilhas, do Regimento de Artilharia Pesada nº 2 em Vila Nova de Gaia, onde formei Batalhão para cumprir uma Comissão de Serviço em Moçambique, além do Arquivo Geral do Exército, Arquivo Histórico Militar, Arquivo Central da Marinha, Arquivos da Radio Televisão Portuguesa e Biblioteca Municipal de Almeirim onde consultei o jornal “Almeirinense” da época.
E as fotografias?
As fotografias são todas da minha autoria, já que durante a comissão, tive a
companhia de uma máquina fotográfica de marca Canon QL 19.
A quem dedica a obra?
Dedico-a a todos os camaradas que, por força do Serviço Militar Obrigatório, tiveram de enfrentar uma guerra absurda e sem sentido, onde muitos perderam a vida, e muitos ficaram estropiados física, e mentalmente, para toda a vida.
Como gostava ou quer que vejam este livro?
Que vejam este livro como um documento que possa servir de reflexão a
uma sociedade, que por força das novas tecnologias, tem tudo a seus pés. Viver durante dois anos, confinado a um espaço circundado por arame farpado, onde nada havia, longe de tudo e de todos, foi um período da nossa história, que deveria ser estudado e dado a conhecer às gerações vindouras. Os muitos testemunhos existentes, por via de trabalhos semelhantes a este, escritos nas primeiras pessoas, que viveram as agruras da Guerra Colonial, deveriam despertar o interesse das pessoas que têm a missão de ensinar. Eu fiz a minha humilde parte, sabendo no entanto, que outros viveram momentos muito piores que os meus. Cada combatente tem a sua história e nenhuma é igual.
Por outro lado, eu gostava que as escolas vissem este livro como um documento de estudo e que fosse passado aos alunos a visão de quem passou realmente lá.
A primeira edição teve 500 exemplares. Ainda há livros?
Sim. O livro além de poder ser adquirido em livrarias onde a Editora os fez
chegar, pode ser adquirido através da minha pessoa, contactando o número
938723307.
Porque convidou o professor Eurico Henriques para escrever o prefácio?
O professor Eurico Henriques, além de ser um historiador, foi também um ex-combatente, o que por esse facto, reunia todas as condições para escrever o prefácio em causa. Acresce a tudo isto, o facto do professor Eurico Henriques, ter tido uma grande influência na minha
decisão, de terminar o livro. Durante o tempo que andei a escrever este
testemunho, tive sempre presente o receio de que o que escrevia, não tivesse qualidade suficiente, ao ponto de não despertar o interesse e a curiosidade de futuros leitores, já que é para eles que foi escrito.
Esse receio foi desvalorizado pelo professor Eurico Henriques que
teve a coragem de me incentivar a continuar, fazendo força para que o mesmo pudesse ser editado. Por isso, foi ele a primeira pessoa a quem dei a ler, aquilo que mais tarde e em boa hora, deu origem a um livro, fazendo eu questão, se fosse esse o seu entendimento, a escrever o prefácio.
Gostaria ainda a terminar esta entrevista de fazer um agradecimento ao Fernando Veríssimo. Foi ele que concebeu a capa e, apesar de suspeito, não devo deixar de dizer que está muito bem conseguida.
Esta entrevista está de acordo com o antigo acordo ortográfico.