POLÉMICA O ALMEIRINENSE entrevistou Rui Roda, que é licenciado em Finanças, com uma carreira profissional começada em Angola, em 1971.
Desde 2010 é consultor independente, atuando em projetos internacionais de gestão de serviços de águas ou de reformas institucionais do setor da água. Vai ajudar a perceber a polémica com as Águas do Ribatejo.
A partir de setembro de 2020 surgiram várias notícias dando conta de faturas muito elevadas nas Águas do Ribatejo (AdR). Ajuda-nos a perceber porque aconteceu isto?
Aconteceu nesse mês o que se chama a “tempestade perfeita”. Foi o confinamento dos clientes, desde meados de março, que deve ter aumentado o consumo das famílias. A AdR também entrou em confinamento e afastou-se do contacto com as pessoas, reduzindo os serviços de leitura e fechando as agências, pelo que os clientes perderam
a informação que os ajudava a controlar os gastos. O largo período com consumos estimados abrangeu o Verão, quando boa parte dos clientes
consome mais água na rega das árvores e jardins.
E, muito importante, entrou em força a tarifa dos resíduos (Almeirim e Coruche), com quatro escalões, tal como a água, que agravou fortemente uma conta já “salgada” pelos mesmos quatro escalões no saneamento, quando boa parte do aumento do consumo adicional do verão vem da rega e que, por isso, é uma água que não volta à rede coletora não se justificando cobrar por serviços não prestados de coleta e tratamento de esgoto ou de recolha de resíduos.
Contudo, todas estas causas somadas não justificam a enormidade dos aumentos verificados, até porque não se consegue encontrar, no histórico de períodos homólogos de anos anteriores e para os clientes afetados, justificação dos valores absurdos das contas, tanto mais que a AdR confirmou que não havia roturas nas redes internas dos consumidores.
A empresa justificou com consumos maiores no confinamento e também o facto das leituras terem diminuído. Compreende esta posição?
Sinceramente não. Os consumos do confinamento e a diminuição das leituras não justificam a enormidade de certas faturas. Ora, se os valores registados nos contadores excedem largamente o histórico de consumo dos
clientes (sem nenhuma explicação plausível), a gestão da AdR deveria
perceber que existe um problema que precisa de ter uma solução construtiva.
De uma Entidade Gestora de boa fé espera-se uma análise aprofundada de cada reclamação, identificando o local do consumo, o estado da rede e dos respetivos órgãos de proteção e o histórico de pressões e de interrupções
no serviço, em vez daquela resposta-padrão, tão pronta e taxativa (“se o
contador marcou e se não teve roturas internas, é porque consumiu e tem de pagar a água, o saneamento e os resíduos”).
Faltou agilidade de gestão, proatividade, perceção das necessidades
e expetativas dos clientes. A agravar, a AdR ignorou o problema dessas
contas excessivas em clientes com reformas mínimas. Comparativamente,
a Águas de Ourém (Be Water, uma empresa de capitais chineses), tendo referenciado alguns casos semelhantes, não hesitou em anular essas faturas.
Os Relatórios e Contas da AdR descrevem, quando abordam o elevado
número de roturas na rede de distribuição, que tal se deve ao “desgaste de
materiais e deficiente estado de condutas e ramais”. Mas o plano de investimentos a 40 anos está orientado para captações, estações de tratamento de água e de águas residuais, elevatórias de água e esgoto, adutoras e reservatórios.
Nada de significativo é referido para melhorar as redes de distribuição
e os respetivos acessórios de proteção e manobra. Não tendo a AR condições
de assegurar o correto funcionamento de uma rede vetusta, herdada, já lá vão 13 anos, de 7 municípios com diferentes padrões de qualidade e mantendo elevadas perdas (33,9% no 1º semestre de 2020, valores que se têm mantido sem melhorias desde 2017) e operando com órgãos deficientes e níveis elevados de suspensões de abastecimento, é legítimo suspeitar que essas medições erráticas (sobretudo nos contadores de velocidade) se devem muito a deficiências do funcionamento das redes.
Qual a melhor forma de solucionar estes problemas?
Será preciso modificar a atitude da AdR para com os clientes. Numa empresa de serviços públicos, há seis “Partes Interessadas” no seu bom funcionamento. Três exteriores, a quem se dirige a sua atividade (os Clientes, o Poder Concedente, que entregou a gestão do serviço à AdR, e a Comunidade/Ambiente) e três Partes internas, que são remuneradas pelos rendimentos gerados com as tarifas (Acionistas, Trabalhadores
e Fornecedores).
Nesta empresa intermunicipal, os municípios são, ao mesmo tempo, os Concedentes, os Acionistas, os representantes dos interesses difusos do Ambiente/Comunidade e a hierarquia máxima dos Trabalhadores. O equilíbrio entre as Partes deixa de existir e a rigidez que observamos na relação da administração da AdR com os Clientes é o resultado desse desequilíbrio. Uma possibilidade de mitigar tal desequilíbrio será a criação
de um Provedor dos Clientes, que não seja um mero cargo decorativo, como sugerimos adiante.
Há pessoas que vão levar o assunto para tribunal. Poderão ter razão?
Há casos que não se podem explicar racionalmente, seja do ponto de vista do histórico de consumo do cliente, seja por um volume impossível de m3 consumidos face ao número de moradores ou à área da propriedade. A empresa foi de uma insensibilidade tremenda em não lhes ter prestado mais atenção que a rotineira inspeção e carta de desobriga, quando tem claras deficiências ao nível da distribuição. Mas, para isso, está o GLCADR-Grupo de Lesados ou Contribuintes das Águas do Ribatejo.
Nas faturas da água estão também valores de resíduos e saneamento. Não devíamos ter faturas separadas? Assim não ajuda a aumentar a confusão?
Água e saneamento de águas residuais são o mesmo serviço. Naturalmente
que têm de estar juntas, na mesma fatura. O problema é, por se tratar de um serviço essencial, o Estado e os Municípios penduram-se nele para terem receitas adicionais de forma fácil. O Estado vai lá buscar as tarifas de recursos hídricos sobre a água e sobre o saneamento (uma boa intenção inicial, para investir na melhoria dos recursos hídricos, mas que já foram incorporadas no Fundo do Ambiente e passaram a pagar os passes sociais em Lisboa, Porte e áreas metropolitanas).
As tarifas de resíduos tinham inicialmente apenas dois escalões; mas como algumas Câmaras precisam de mais receitas, adotaram os mesmos quatro escalões da água, o que é absolutamente contraditório com o objetivo de aumentar a reciclagem dos resíduos (o país está atrasado nesta obrigação). E a administração da AdR? Lavou as mãos desse sobrecusto e nem sequer o menciona nos folhetos anuais das tarifas, apesar de a ERSAR recomendar às entidades gestoras que tenham atenção ao valor global da fatura, incluindo os adicionais.
As pessoas não continuam também ainda a não usar de forma racional a água?
Comparando com o que vi em outros países, com capitações de 500 litros/ hab/dia ou mais, diria que, na nossa região, as pessoas usam a água de forma racional, até porque pagam os excessos em escalões mais caros, o que dissuade o desperdício. Pode-se discutir se usar a água da rede para regar o quintal ou encher uma piscina são utilizações racionais para uma água tratada. Mas a alternativa seria terem captações próprias, no que estariam a concorrer com as captações da AdR no mesmo aquífero… e assim sempre contribuem para as receitas da empresa.
Qual é o modelo de gestão de água que defende?
A água é um serviço público que deve ser prestado por uma organização empresarial, com dimensão adequada, para beneficiar de economias de escala e de gama. As empresas têm mais elasticidade de gestão, estão mais abertas a implementar sistemas certificados de gestão da qualidade e estão mais atentas à inovação tecnológica que os simples serviços à escala de cada município.
Muitas vezes se compara o preço de uns e outros, porque a água, na aparência toda igual, tem qualidades e/ou serviço bem diferentes.
No futuro a água terá preços muito mais elevados?
À medida que for aumentando a pressão dos humanos sobre os recursos
hídricos, será necessário intensificar o tratamento da água ou do esgoto, passar a tratar as águas pluviais, antes que cheguem à natureza, o que tem custos acrescidos. Por outro lado, novas técnicas de gestão deverão reduzir custos, sobretudo em materiais mais baratos e duradouros, ou pelo recurso crescente à informática e à telegestão.
Há alguma ideia que devíamos ter explorado?
Vale a pena pensar como tornar a AdR uma empresa querida pela comunidade, em que os seus funcionários tenham orgulho na farda que envergam e em chegar ao trabalho com ela vestida.
A construção dessa empresa precisa de ser uma tarefa participada entre os
seus dirigentes e a comunidade (hoje, a AdR tem um interlocutor potencial, o GLCADR, assim o queira).
Ideias que me ocorrem:
– Realização de sondagens regulares (verão/inverno), para conhecer o que
pensam os clientes e quais as suas expectativas, comparando o desempenho
da AdR com outros prestadores de serviços públicos da região;
– Em correspondência, uma “mudança de chip” nos dirigentes da AdR, ainda
imbuídos do espírito dos funcionários das empresas públicas dos anos 70/80 (“de que se queixam os clientes se estamos a trabalhar para eles e fazemos o melhor que podemos?”), orientando a gestão para aquilo que são as necessidades sentidas pelos clientes e restantes partes interessadas;
– Reformulação do tarifário de resíduos, voltando aos dois escalões e limitação da sua proporcionalidade aos m3 de água faturados nesses dois escalões. Não é por consumir mais água no Verão que uma família vai gerar mais resíduos; ao contrário, uma fatura excessiva vai levar ao desinteresse pela reciclagem (uma meta em que o país já está atrasado, como se referiu acima);
– Reformulação do tarifário de saneamento, para introduzir um fator de sazonalidade que corrija a desadaptação de um sistema criado por quem vive em Lisboa, para quem vive em apartamentos, no centro das localidades: Fora destes, na nossa região, a regra é a habitação unifamiliar com quintal, em que o saneamento não é proporcional ao consumo da água, pois a água consumida na rega do jardim ou nalgumas árvores de fruto já não regressa à rede coletora;
– Criação de um Provedor dos Clientes, com poderes reais para tomar iniciativas de defesa dos clientes e que se possa dirigir diretamente à ERSAR, como forma de compensar a posição dominante dos municípios no modelo de conciliação de interesses dentro da empresa;